domingo, 24 de setembro de 2017

A LEI 10.639/03 - NECESSIDADE, IMPORTÂNCIA E APLICAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL I


A LEI 10.639/03 - NECESSIDADE, IMPORTÂNCIA E APLICAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL I


Nota: Este artigo foi escrito como trabalho de conclusão de curso em 2013 para a graduação em pedagogia (a qual não conclui, mas fui aprovada na disciplina de TCC! Só rindo de mim mesma!!).
Em 23/09/2017 este trabalho foi apresentado como banner digital no "Seminário de reflexões educativas: currículo e infância - Ampliando o debate e aprofundando as práticas" organizado pelas unidades Lajeado e Jambeiro da UniCeu com a DRE Guainases.

Resumo: Este artigo aponta alguns caminhos para a efetiva aplicação da lei 10.639/03 na Educação Infantil e Ensino Fundamental I a partir do conhecimento do professor e da professora dos aspectos históricos da população negra no Brasil desde o século XVI, das desigualdades sociais históricas que motivaram a criação da lei, do importante papel a ser desempenhado por esses profissionais para a mudança do paradigma social brasileiro e da possibilidade de alcançar esses objetivos a partir do ensino de literatura afro-brasileira.
Palavras-Chaves: literatura afro-brasileira. educação infantil. formação de professores. diferenças étnicas.

Introdução

Este artigo tem como objeto de estudo a lei 10.639/03 sua efetiva necessidade para a sociedade brasileira, a importância de sua existência e cumprimento e o papel da escola e das professoras e professores em sua aplicação. O interesse por esse assunto surgiu há alguns anos com o início dos debates em ambiente acadêmico sobre como essa lei poderia ser cumprida, de que forma deveria ocorrer a formação de educadores para esse fim e como fazer com que esse conhecimento chegue às escolas.
Realizar o estudo da referida lei pautando-se por referências históricas visa legitimar a necessidade de sua existência, visto que mesmo após dez anos de sua entrada em vigor alguns setores da educação ainda são resistentes ou ignoram sua pertinência. Acreditar que os seres humanos podem ser diferentes, mas que essas diferenças não podem causar situações de discriminações e exclusões é a razão para a escolha desse assunto.
Para tanto será utilizado o método de pesquisa bibliográfica unindo ou confrontando discursos sobre essa temática de importante relevância histórica, política e pedagógica. Fundamental a formação do ser humano, sobretudo na primeira infância.
O trabalho compreende quatro partes, na primeira “Aspectos históricos” é brevemente abordada a configuração brasileira desde a chegada dos portugueses até a abolição da escravatura e os movimentos de resistência realizados pelos escravizados. Na segunda, “A necessidade de ações afirmativas, tais como a lei 10639/03” são abordadas as situações de racismo no cotidiano brasileiro, fato que justifica a criação da referida lei e sua necessidade para as relações sociais brasileiras a partir da escola. Na terceira “O importante papel do professor na desconstrução/transformação dos processos de preconceito e discriminação” é abordada a dinâmica da prática educativa na escola desde a educação infantil ao ensino fundamental I. Na quarta “O ensino da cultura afro-brasileira nas aulas de língua portuguesa/literatura para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental I” é abordada a utilização da literatura como importante instrumento na construção de valores positivos para a criança afrodescendente.
1 – Aspectos históricos

Os portugueses, após chegarem ao território que posteriormente seria chamado de Brasil, precisavam de ajuda para a exploração, a princípio, dos recursos naturais que se apresentavam em abundância, no caso o pau brasil e posteriormente com as culturas da cana de açúcar, do café e também nas minas de ouro. No início contaram com a colaboração do povo originário da terra, que fora erroneamente denominado de indígena em alusão a Índia. Essa ajuda não teve longa duração, pois os povos do Brasil não conheciam relações hierárquicas, não se submetiam pacificamente aos comandos dos portugueses, tinham costumes considerados desconfortáveis àqueles visitantes (a antropofagia, por exemplo), morriam das doenças trazidas pelos portugueses, às quais não possuíam defesas e, além disso, a Igreja Católica desaprovava essa exploração, pois visava à cristianização dessas populações, tarefa desempenhada pelos jesuítas.
Ainda na primeira metade do século XVI os portugueses iniciaram o tráfico de africanos para o trabalho escravo, essa prática foi extremamente rentável à coroa portuguesa, tanto o tráfico em si com a comercialização de africanos, como com o trabalho escravo a que essas pessoas foram submetidas em terras brasileiras.
É importante ressaltar que a escravização de africanos não foi aceita com docilidade por essas pessoas, durante todo o tempo em que houve escravização de africanos no Brasil os movimentos de resistência também atuaram. Alguns a partir de ações individuais ou com pouca visibilidade, tais como a preservação de manifestações religiosas, alguns hábitos culinários, a capoeira, a prática do suicídio e do aborto, outros mais organizados, tais como o conflito direto, as fugas e a formação de quilombos.
O fim dessa situação, inaceitável, de escravização de seres humanos se deu  com a assinatura da Lei Áurea em 1888, porém apenas foi decretada a abolição da escravidão sem nenhuma ação para a inclusão dessas pessoas na vida social, no mundo do trabalho. Elas foram libertas e deixadas à própria sorte. Seguiu-se a essa lei a política do branqueamento, em que se incentivou a imigração de povos europeus para o trabalho nas lavouras e nas cidades brasileiras. Assim, a população negra foi sendo apartada da sociedade, agora não mais nas senzalas, mas por meio do estigma da escravização e da pobreza.
Em 1933 Gilberto Freyre publicou o livro Casa Grande e Senzala em que afirma ser o processo de escravização à brasileira menos cruel que o modelo norte americano, que as relações interétnicas aqui se deram de modo mais terno, mais brando e acaba criando o mito da democracia racial. Mito esse que por anos desautorizou o conhecimento, o estudo aprofundado e o enfrentamento aos problemas étnicos brasileiros. Somente a partir de estudos desenvolvidos por sociólogos, destacando-se Florestan Fernandes com a publicação: A integração do negro na sociedade de classes, de 1964, esse mito começa a ser desconstruído e outros estudos acerca do espaço e do papel do negro na sociedade brasileira começam a ser desenvolvidos. Mesmo com esse cenário é preciso destacar que essa população não ficou apenas esperando uma solução vinda de fora, uma iniciativa de outrem, sempre houve um movimento de resistência e conscientização em relação a ocupar seu espaço na sociedade, como por exemplo, a chamada imprensa negra, termo utilizado no meio acadêmico para nomear as revistas e jornais publicados, majoritariamente em São Paulo, desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Essas publicações, realizadas e direcionadas à população negra, funcionavam como instrumentos de integração, combatiam o preconceito, divulgavam eventos, festas e concursos voltados ao povo negro e que eram ignorados pela “grande imprensa”, essas ações já buscavam a afirmação social da população negra.


2 – A necessidade de ações afirmativas, tais como a lei 10.639/03

Uma configuração social como a brasileira não se altera naturalmente, sem nenhum tipo de intervenção, o que ocorre dessa maneira é apenas a perpetuação do status quo, em que a menor parcela da população detém o poder político e financeiro e a maior parcela da população permanece submetida às vontades da minoria, passando por toda sorte de situações de exclusão, privações de direitos e a quase impossibilidade de ascensão social.
A lei 10.639/03 possibilita uma tomada de consciência, conhecimento histórico das populações negras em África e em território brasileiro e busca a extinção do preconceito racial.
O parecer do Conselho Nacional de Educação de 2004 afirma

A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravagista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte de discriminações. (CNE/CP 003/2004, p.3).


A referida lei estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. Reconhecer em forma de lei a necessidade do ensino desses conteúdos significa também reconhecer e legitimar a luta por igualdade de direitos sociais, econômicos, civis e culturais da população negra brasileira. Para que esta lei seja efetivamente cumprida é necessário mudar os discursos, pensamentos e a lógica de se acreditar no mito da democracia racial brasileira, pois o reconhecimento da necessidade de uma lei como esta demonstra o imenso abismo existente nessa sociedade.
Esse reconhecimento precisa vir acompanhado de mudanças de paradigmas já consolidados na sociedade brasileira e que lentamente vêm sendo alterados, em grande parte por força da lei 10.639/03, mas também de um conjunto ações afirmativas que incluem a lei de cotas para as universidades públicas brasileiras. Mudar esses paradigmas também implica adotar estratégias de valorização da diversidade, superação da desigualdade étnico-racial, extinção de estereótipos depreciativos, extinção de sentimentos de superioridade racial, divulgação e respeito à história da resistência do povo negro enquanto escravizado, fornecimento de materiais adequados com esses conteúdos e formação de qualidade aos professores, para que possam ser instrumento dessa mudança dentro do ambiente escolar.
O parecer do Conselho Nacional de Educação ainda afirma

Políticas de reparações e de reconhecimento formarão programas de ações afirmativas, isto é, conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória. Ações afirmativas atendem ao determinado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos (Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 1996), bem como a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo de combate ao racismo e a discriminação, tais como: a Convenção da UNESCO de 1960, direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino, bem como a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminações Correlatas de 2001. (CNE/CP 003/2004, p.4).

Portanto, a criação da lei 10.639/03 vem de encontro a reivindicações do movimento negro organizado no Brasil a partir de demandas efetivas da sociedade e também de orientações internacionais nesse sentido, tomar essas medidas significa cumprir o artigo 3º da Constituição Federal “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Contribuindo assim com a plena formação da identidade de cada cidadão brasileiro.

3 – O importante papel do professor na desconstrução/transformação dos processos de preconceito e discriminação

Na atual configuração social brasileira, muitas crianças estão sendo enviadas à escola já para a educação infantil, sendo educadas desde muito cedo longe de suas famílias e dentro de uma estrutura formal e impessoal.
Crianças muito pequenas, bebês de meses até os três anos de idade, precisam de muito suporte físico e emocional, incluindo-se os cuidados básicos com a higiene, alimentação, afeto e proteção. Cuidados estes, anteriormente, de modo geral, oferecidos pela família. Com a atual institucionalização dessas crianças esses cuidados primordiais têm de ser oferecidos por profissionais sem vínculo afetivo com elas. O vínculo entre um bebê e sua mãe é a base para o pleno desenvolvimento da criança e para seus relacionamentos futuros. Se esse vínculo materno é, em parte, substituído pelo vinculo com o profissional de educação é necessário pensar na qualidade desse vínculo. Uma criança pequena é totalmente dependente de cuidados com seu corpo e higiene, esse momento de higiene não pode ser apenas mecânico como o cumprimento de uma função, o profissional estará com o corpo dessa criança nas mãos, todas as suas atitudes, expressões faciais, modo de falar, são sentidos por essa criança. Se o profissional que cuida de uma criança negra tem sentimentos racistas, esses, de alguma forma, serão sentidos pela criança, devido à intimidade da situação. Um breve exemplo como esse indica a grande responsabilidade de educadores perante a diversidade étnica presente na escola.
Negar a diferença não é o caminho, pois qualquer criança pequena pode olhar as pessoas que a cercam e notar as diferenças, umas pessoas são brancas, outras negras, outras têm os olhos claros ou orientais, outras têm cabelos claros ou ruivos, crespos ou lisos, enfim, as diferenças são inúmeras, porém as diferenças são apenas isso, diferenças. Segundo Santos “percebe-se que diferenciar não só é algo natural, como também é essencial para a construção da nossa identidade” e ainda que “diferenciar é uma forma de apropriação do mundo, de conhecimento, de construção de si mesmo.” (SANTOS, 2009, p. 14). Portanto diferenciar é parte importante para a construção da própria identidade e tão importante quanto a construção de uma identidade própria é aprender a lidar com a diferença, a se relacionar com o outro. O problema ocorre quando as diferenças são hierarquizadas, de modo a colocar uma como sendo melhor que a outra, quando isso ocorre se presencia a discriminação que vem seguida da intolerância e segregação. Rotular as pessoas devido à suas características físicas sempre gera conflito e sofrimento. Quando uma criança pequena é atingida por essa discriminação ela acaba sofrendo um processo de destruição de sua autoestima. Se essa exposição é sistemática pode gerar sentimentos de inferioridade, de não reconhecimento de si como membro de determinado grupo ou etnia e até de negação de si e de suas origens.
De que forma o professor ou a professora podem se posicionar dentro desse cenário sabendo-se que a escola é o espaço social privilegiado para lidar com as diferenças na infância? É impossível não levar em consideração as limitações desse profissional, sua extensa jornada de trabalho, baixos salários, condições precárias de contratação, lacunas na formação acadêmica, falta de recursos materiais nas escolas, enfim, as dificuldades desses profissionais são inúmeras, isso não deixa dúvidas, porém, nesse momento é necessário tratar apenas do caso específico de como esse profissional é importante para a efetivação da lei 10.639/03 e também para as relações afetivas e na construção da identidade das crianças.
Primeiro é importante frisar que uma pessoa não pode ensinar o que não sabe ou aquilo que despreza. A formação de professores deve enfatizar a importante atuação desse profissional em relação à formação da personalidade de seus alunos, em relação a como reconhecer as diferenças sem hierarquizá-las, em relação ao conhecimento dos povos do Brasil, “mais informações a respeito da história do negro brasileiro, para além do viés da escravidão” (MARTINS, p.34), em relação à percepção do racismo nas atitudes do cotidiano, além das disciplinas tradicionais da formação de professores e da disciplina que será ministrada por esse profissional.

O papel do professor é fundamental tanto para impedir que o processo de diferenciação se torne um processo de discriminação e segregação no espaço da escola quanto para oferecer novos modelos e valores com os quais crianças negras e brancas possam se identificar e que promovam, entre elas, a aproximação em vez do estranhamento.
Para a formação de crianças negras felizes com o que são, crianças que aprendam a gostar delas mesmas, é necessário o reconhecimento sociocultural do negro e dos valores de origem africana como sinônimos de positividade. Esses valores, presentes nos espaços de formação das crianças, poderão ser incorporados por elas, aceitos e vivenciados sem conflitos. Ao professor cabe também oferecer elementos positivos com as quais as crianças negras possam se identificar. (SANTOS, p.44 e 45)

É importante também salientar que as situações de racismo no Brasil são cotidianas e de difícil percepção, pois devido ao mito da democracia racial dificilmente as pessoas se percebem como racistas ou percebem que suas atitudes são racistas, dessa forma, se faz necessário que professores e professoras saiam “do senso comum para poder enxergar com mais perspicácia a realidade na qual estão inseridos.” (MARTINS, p.16).

4 – O ensino da cultura afro-brasileira nas aulas de língua portuguesa/literatura para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental I

Para que se cumpra o texto da referida lei faz-se necessário que a criança, desde muito cedo, aprenda a lidar com a diversidade cultural e étnica a qual está inserida. Dessa forma, é possível já na educação infantil, que os profissionais da educação atentem para essa necessidade e desenvolvam seu trabalho no intuito de atendê-la.
É importante à criança se ver, se encontrar, se reconhecer nos textos literários a ela oferecidos, sendo essa uma das razões pelas quais os clássicos da literatura infantil estarem presentes na escola, mas a quase totalidade dos textos conta histórias de crianças brancas, em suas ilustrações também são retratadas estas crianças e a visão de mundo, a lógica do pensamento é sempre eurocêntrica, ocidental. Quase apagando a existência de crianças negras ou de outras etnias. Para que a criança negra construa uma imagem positiva de si é fundamental que ela tenha contato com textos que a retratem, que dialoguem com sua realidade e que também dialoguem, retratem as características e a “cosmovisão do africano, sua concepção do universo, da vida e da sociedade.” (AMÂNCIO, 2008, p.43) Infelizmente, mesmo hoje, dez anos depois da entrada em vigor da lei 10.639/03 a oferta dessas publicações ainda deixa a desejar. Ratificando esta ideia o escritor Ferréz, em sua passagem pela literatura infantil, com o livro Amanhecer Esmeralda, no prólogo, afirma que “alguém (uma criança) que quer olhar no espelho e ver um rosto e por trás do rosto ver uma história não de escravidão, mas acima de tudo ver uma grande cultura, uma história de honra e glória”. (FERRÉZ, 2005, p.5)
A presença da literatura infantil na escola há muito tempo é uma realidade e ela tem a função de estimular o imaginário das crianças, fornecer-lhes material importante para a construção de valores e também para a fruição, pois a criança é considerada “um ser educável: o ser humano é (ou deve ser) um aprendiz de cultura, enquanto dura o seu ciclo vital.” (COELHO, 2008, p. 17). A escola é o lugar privilegiado da formação, da transformação e a literatura infantil é parte importante desse processo, pois “a verdadeira evolução de um povo se faz ao nível da mente, ao nível da consciência de mundo que cada um vai assimilando desde a infância... o caminho especial para se chegar a esse nível é a palavra. Ou melhor, é a literatura...” (COELHO, 2008, p. 15)
Encarar a literatura como um prazer desde a mais tenra idade só tem a contribuir para a sua tarefa de agente de formação, seja de repertório, de valores, de afetos e também precisa possibilitar a todas as crianças um reconhecimento positivo de si e de sua realidade.
No ensaio “O direito à literatura”, Antonio Candido, compara o direito à literatura a um direito humano, portanto comum a todos os seres desta espécie, sendo um direito humano, precisa ser universal, pois todas as pessoas são contempladas por ele, sendo assim como uma criança pode ser privada de se ver nesse universo? O autor ainda faz reflexões acerca da função da literatura

A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a podemos distinguir pelo menos três faces: ela é uma construção de objetos autônomos com estrutura e significado; ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. (CANDIDO, 2004, p. 176)

Candido atribui o efeito da literatura no leitor devido à atuação simultânea desses três aspectos, das três faces descritas por ele. A força das palavras organizadas pelo escritor atua poderosamente no imaginário do leitor que a partir do que lê (ou ouve) constrói seu imaginário próprio, se expõe a visão de mundo ali partilhada, aprende e incorpora valores. Se a criança não tem acesso a uma literatura que a retrate ela terá dificuldades em formar valores positivos ligados a sua vida. O autor finaliza seu ensaio enfatizando a importância da fruição da literatura e afirmando que “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.” Por esse motivo mostra-se tão importante o contato sistemático da criança com a literatura universal, mas também, e principalmente, com a literatura em que ela se reconheça, no caso, a literatura afro-brasileira e africana.
Nelly Novaes Coelho defende que há uma mudança de paradigma na literatura infantil que contrapõe um modelo tradicional a um novo modelo, neste novo modelo valores como o espírito solidário, o questionamento da autoridade, a moral de responsabilidade ética, a criança entendida como ser em formação e o mais relevante para este estudo, uma atitude antirracista.

Luta para combater os ódios raciais tão fundamente enraizados em nosso mundo. Valorização das diferentes culturas, que correspondem às diferentes etnias, na busca de descobrir e preservar a autenticidade de cada uma. Na literatura, essa luta já está bem evidente. Na infantil, mesclam-se, em pé de igualdade, personagens das várias raças, e também é abordado frontalmente o problema do racismo, considerado como uma das grandes injustiças humanas e sociais. (COELHO, 2008, p. 27).

A professora ou professor da educação infantil e/ou ensino fundamental I pode e deve utilizar o recurso da oralidade para a difusão de textos que se encaixem aos objetivos já citados. Inclusive a oralidade é uma marca da cultura dos povos tradicionais africanos, assim como, dos povos tradicionais brasileiros. O livro Amanhecer Esmeralda de Ferréz e Histórias da Preta de Heloisa Pires Lima são úteis para o desenvolvimento do trabalho de aproximação das crianças à literatura afro-brasileira. Ferréz conta a história de uma garotinha negra, moradora de uma favela, que se cuidava sozinha, pois a mãe trabalha e o pai era alcoólatra, a primeira vista parece ser mais uma história triste, mas não é assim, a personagem recebe ajuda de alguns adultos, se descobre uma menina bonita tendo seus traços africanos e seus cabelos valorizados, no fim presenciamos uma história de transformação de toda uma comunidade a partir do resgate da autoestima de uma menina. Já Heloisa Pires Lima, desenvolveu uma narrativa mais longa, em que conta das raízes africanas até o presente dos afro-brasileiros, passeando pelas lendas, tradições e religiosidade do africano, costurando a história de modo que a personagem Preta a contasse, contasse sua história de afro-brasileira.
Esses dois livros são exemplos de possibilidades para o trabalho com as crianças pequenas, são capazes de introduzir o tema África, e acima de tudo, fazerem com que essas crianças se reconheçam a partir de modelos positivos.


5 – Considerações finais

Toda a lei é, ou deveria ser criada a partir de demandas da sociedade, no caso da lei 10.639/03 essa necessidade pode ser ratificada a partir da breve análise a que este artigo se dedicou. Do ponto de vista histórico é possível construir argumentos que fundamentam essa necessidade. A situação da chegada dos africanos em terras brasileiras, a cruel exploração a que foram submetidos por mais de três séculos, a segregação ocorrida após a abolição e mesmo com todos esses reveses, esse povo conseguiu perpetuar sua cultura e sua religião por meio de movimentos de resistência.
O apagamento oficial da história do povo negro e a tentativa de calar as manifestações culturais e artísticas se deram devido ao mito da democracia racial e a política do branqueamento, ações que sofreram resistência constante, porém somente a partir da década de 1960, com os estudos acadêmicos realizados, esse cenário começou a ser alterado, ainda que lentamente.
Com a entrada em vigor da referida lei a sociedade como um todo e mais especificamente os órgãos governamentais ligados à educação e universidades com cursos de licenciatura foram obrigados a traçar uma nova e importante estratégia para atendê-la e principalmente atender a demanda social defendida pelos movimentos em prol aos direitos do povo afro-brasileiro. Com essa mudança de perspectiva o espaço escolar e a professora ou professor passou a ser agente transformador e disseminador dessa história e cultura. As dificuldades enfrentadas pela escola brasileira e a resistência em reconhecer a necessidade dessa lei ainda contribui para a morosidade em atendê-la plenamente, mas indiscutivelmente, é um grande benefício para as crianças negras e brancas terem acesso ao conhecimento dessa história, pois ela é parte, em alguma medida, de todo o cidadão brasileiro. O conhecimento dessa história e cultura tende a diminuir algumas situações de hostilidade ainda presentes na sociedade e promover o convívio afetuoso e pacífico entre as crianças e as pessoas de modo geral, pois o outro é só diferente, nem melhor nem pior, apenas diferente.
Mediando esse trabalho a literatura se mostra um eficiente instrumento, pois ela é capaz de promover a reflexão, formação de valores positivos e transformação de situações. Permite que os indivíduos se reconheçam a partir de modelos positivos, discursos de solidariedade e fruição do belo.


Referências bibliográficas

AMÂNCIO, Iris Maria da Costa; GOMES, Nilma Lino; JORGE, Miriam Lúcia dos Santos. Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
BRASIL. Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 de junho de 2013.

BRASIL. Lei 10.634, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 01 de junho de 2013.

BRASIL. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Parecer n.º 003/2004. Disponível em: http://www.prograd.ufba.br/Arquivos/CPC/Parecer%20CNE%203-2004.pdf. Acesso em: 01 de junho de 2013.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 2004.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2008.

CUTI. Moreninho, neguinho, pretinho. Coleção Percepções da diferença. Negros e brancos na escola. São Paulo: Terceira Margem, 2009.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo, 2008.

FERRÉZ. Amanhecer Esmeralda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Brasília: UNB, 1963.

HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

LIMA, Heloisa Pires. Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998.

MARTINS, Marilza de Souza; MIRANDA, Maria Aparecida. Maternagem. Quando o bebê pede colo. Coleção Percepções da diferença. Negros e brancos na escola. São Paulo: Terceira Margem, 2009.

MARTINS, Roseli Figueiredo; MUNHOZ, Maria Letícia Puglisi. Professora, não quero brincar com aquela negrinha! Coleção Percepções da diferença. Negros e brancos na escola. São Paulo: Terceira Margem, 2009.

MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: Um ponto de vista em defesa de cotas. In: GONÇALVES e SILVA, Petronilha B. e SILVÉRIO, Valter R. Educação e Ações Afirmativas: entre a injustiça simbólica e a economia. Brasília: INEP/MEC, 2003.

OLIVEIRA, Eliana de. Identidade, intolerância e as diferenças no espaço escolar: questões para debate. Revista Espaço Acadêmico. Ano 1, n.º 7, Dezembro de 2001. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/007/07oliveira.htm. Acesso em: 01 de junho de 2013.

SANTOS, Gislene Aparecida. Percepções da diferença. Coleção Percepções da diferença. Negros e brancos na escola. São Paulo: Terceira Margem, 2009.

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sábado, 9 de setembro de 2017

Resenha do filme Narradores de Javé e a relação com a EJA - Educação de Jovens e Adultos

Resenha do filme Narradores de Javé e a relação com a EJA - Educação de Jovens e Adultos


O filme Narradores de Javé foi produzido no ano de 2003, dirigido por Eliane Caffé e roteirizado por ela em parceria com Luís Alberto de Abreu. Após seu lançamento comercial o filme ganhou nove prêmios no Festival de Recife (incluindo melhor filme e direção), foi escolhido como o melhor filme no Festival Rio BR 2003 e ainda ganhou o prêmio da crítica no Festival de Fribourg, na Suíça.
O filme conta a história da fictícia cidade de Javé e de como ela se transformou em uma represa. Javé é uma típica cidade do interior do sertão brasileiro, abandonada pelo poder público no que concerne ao acesso aos direitos fundamentais de educação, cultura, trabalho e lazer. Quando os habitantes são informados de que a cidade será desocupada para que aquele lugar se torne uma represa a indignação é geral, porém um morador consegue enxergar uma possível saída, provar que a cidade é um patrimônio cultural, desde que isso fosse feito por meio de um documento científico que comprovasse a importância, o valor daquele lugar.
A solução encontrada gera outro problema, quem poderia escrever a história do lugar se todos os moradores eram analfabetos? A única pessoa capaz de executar tal trabalho era também o desafeto da cidade, o antigo funcionário dos Correios Antonio Biá. Biá havia cultivado um grande número de desafetos quando na tentativa de salvar o próprio emprego começou a trocar cartas com habitantes de outras cidades, inventando histórias e se passando pelos moradores de Javé, segundo informações do site Cineduc, essa parte da história foi inspirada por fatos reais vividos por um funcionário dos Correios da cidade de Vau, no interior do Estado de Minas Gerais e confidenciados à diretora e roteirista do filme Eliane Caffé.
Provavelmente no dia a dia, nas atividades desenvolvidas na cidade por seus habitantes e antepassados a escrita não tenha se mostrado de grande importância, porém quando se viram sendo subjugados pelo progresso, pelos valores de uma sociedade da qual estão à margem, começaram a perceber que a escrita, que o conhecimento formal e científico, de alguma forma, estava fazendo falta e colocando-os em posição contrária a seus desejos e hábitos.
O conhecimento transmitido oralmente, até então, tinha sido suficiente para aquelas pessoas, os ensinamentos e histórias da fundação da cidade e da organização das famílias eram transmitidos geração após geração pela oralidade. Essa fórmula foi possível no Brasil por muitos séculos devido a grande extensão de seu território e ao esquecimento do poder público em relação às populações de pequenas cidade e povoados, porém após a industrialização do país esse cenário começou a mudar, na maioria das vezes por interesse do capital, na busca por maximização dos lucros e formação de mercados consumidores. Por outro lado, esse progresso pode trazer para essas populações maior acesso à educação, bens culturais, serviços de saúde, inclusão na sociedade do conhecimento e da informação da qual encontram-se à parte. Por esses motivos a EJA Educação de Jovens e Adultos é importante instrumento de inclusão social, proporcionando aos cidadãos acesso à educação formal, ao mundo do conhecimento.
Em relação a fala de Antônio Biá quando diz: "Vocês acham que escrever essas histórias vai parar a represa? Não vai não. E sabe por quê? Porque Javé é um buraco perdido no oco do mundo. E daí que Javé nasceu de uma gente guerreira, dionisíaca? Se hoje esse é um lugar miserável, com gosto e cor de terra, de gente pocada, ignorante, como eu, como vocês tudinho! O que nós somos é só um povinho ignorante que não sabe escrever o próprio nome, mas inventa histórias de grandeza pra esquecer a vidinha rala, sem futuro nenhum. Vocês acham que os engenheiros vão parar a represa e o progresso por um bando de semianalfabeto? Não! Isso é fato. Isso é científico (ABREU E CAFFÉ, 2004, p.161). Trata-se de uma constatação bastante realista do personagem sobre a sorte da cidade e de seus habitantes. É realmente muito difícil ir contra uma decisão tomada por altas instâncias do poder instituído. Para lutar contra essa força invisível, mas sentida no cotidiano da população, é necessário muita mobilização, conhecimento e poder político. A população consegue realizar algumas mudanças estruturais na sociedade, porém é necessário um enorme engajamento e mobilização, como no caso das “Diretas Já” ou na instituição da lei da “Ficha limpa”, mas ainda assim é preciso que forças políticas institucionalizadas apoiem as causas populares.


REFERÊNCIAS
Cineclick - Tudo sobre cinema. Disponível em: https://www.cineclick.com.br/criticas/narradores-de-jave. Acessado em 09 de setembro de 2017.
Cineduc - Cinema e Educação. Disponível em: http://www.cineduc.org.br/cineaula---narradores-de-jave.html. Acessado em 09 de setembro de 2017.

Obs: Texto escrito originalmente para uma atividade do curso de graduação em Pedagogia Interdisciplinar da Uniceu São Camilo.